domingo, 10 de junho de 2012

Barulhos e tremores


 

O que vou relatar poderia se chamar “O silêncio de um inocente”, entretanto, como esse título já está muito gasto, e eu sei que não sou um cara santo achei piegas e resolvi deixar o título menos falado, mais contundente. Para que vocês o entendam, acredito que é importante explicar um pouco da minha personalidade. Olha, o silêncio faz parte de mim ou eu faço parte dele. Sempre me agarrei à quietude em diversas circunstâncias. Escrevo para tentar entender.
 Desde pequeno me acostumei a um mundo íntimo e interior, cujas palavras eram esparsas. Filho único e sem muitos amigos. Até certa idade, convivi bastante com a televisão. Eu assistia, via as coisas acontecerem com os outros, via e ouvia. Não precisava dizer nada, nada! Minhas palavras eram mudas. Comecei a dar voz a elas quando fiz dez anos, pois aí me mudei, encontrei uma galera e quis jogar futebol. Tudo era um jogo, e eu precisava entender e articular a fala às diversas situações desafiadoras. Vi a importância de ser engraçado, falar palavrão, fazer media: ser foda! Ouvia e ainda ouço calado somente as músicas, só eu sei o quanto elas falam me silenciam! E assim o tempo foi passando, eu me dando bem com as garotas, pois meu papo sempre bacana, ao mesmo tempo que doce, sei ser irônico e até um pouco sério. A vida foi acontecendo. Sentia-me livre para dizer tudo o que quisesse a quem pudesse ouvir. Claro! Tudo ao meu modo, segundo a minha maneira de expressão.
Eis que em determinada ocasião tive a oportunidade de ganhar uma boa grana com um trabalho noturno, poderia descansar durante o dia e à noite eu tomava conta, ou melhor, vigiava jovens infratores. Tenho dois filhos para sustentar e a proposta veio a calhar. O problema é que os adolescentes adoram provocar e confesso que nunca tive pena desses pequenos bandidos. Além do mais, não suportava as suas brincadeirinhas; o papo sujo e desnecessário. Até saí no braço com os caras algumas vezes. Respondia a cada ofensa e as brigas se prolongavam por horas infindáveis em meu subconsciente. Que tormento! Por isso prometi a mim mesmo resgatar um pouco daquele papel de mero espectador dos acontecimentos. Calando, não me desgastava e muito menos era ofendido. Deixava o ofensor criticando o ar, dando socos e pontapés em nuvens e eu não participava daquela arena de rebaixados e torturados pela raiva vã e vilã. Foi um exercício que aprendi a praticar. Antes, dava um murro e urrava, até que cheguei a permanecer quieto e ileso, na minha, em paz.

I

Foi  com tranquilidade que eu e meu companheiro recebemos o plantão no dia 12 de abril, quinta-feira às 19 horas. Até às 19h 40, tudo ocorria normalmente; havia apenas 8 adolescentes na casa.
Quando eu olhei para sala, vi meu colega assustado, pois da janela sobressaía    uma mão que apontava certa arma e determinada voz dava alguma ordem. De repente, outro assaltante entra e encosta um revólver em minha cabeça. Ele me revistou e disse para eu deitar com o peito no piso da sala. Amarrou-me os braços e as pernas com fio de luz, depois jogou um cobertor sobre minha cabeça. E eu mergulhei no negro e inquieto silencio. O mesmo fizeram com o o outro educador, mas, esse foi levado para a parte de fora da casa. Os adolescentes já haviam recebido a ordem de saírem e não se envolverem na tramóia.
            Os caras pediram as carteiras e os celulares, meu companheiro prontamente atendeu; eu havia deixado a minha na mochila que estava na sala dos educadores. Logo eles sacaram o dinheiro. Depois me interrogaram sobre o celular. Disse que não tinha! Verificaram nos bolsos da minha calça, mas o aparelho estava localizado sobre meu peito, dentro
do lado direito da "japona" . Viraram mas, verificaram apenas o esquerdo, enquanto o telefone era comprimido sobre o piso da sala. De minha mochila, retiraram cadernos e um livro, deixaram meu laptop e colocaram outros objetos dentro. Continuaram procurando coisas, abrindo salas e armários, jogando objetos no chão. E eu era atormentado pelos barulhos, pelos ruídos daqueles movimentos insuportáveis! Diante da minha resposta negativa levei pancadas na costela, pisões na costas e um forte chute no rosto que parecia ter quebrado um dente.
II
Queriam a chave de um veículo Saveiro, mas nehum de nós  dois era o dono desse carro. Nem sabíamos que tinha uma em frente da Semi e muito menos de quem era). Perguntavam da chave e nós falamos onde nossos carros estavam estacionados. Meu carro é um Gol branco, o Corsa verde é do meu amigo. Quando os quatro assaltantes entraram com duas armas e camisetas amarradas nos rostos (deixando à mostra apenas olhos, testa e cabelos), percebemos que um deles já havia passado há pouco tempo pela casa. Seu nome é Carlos Machado, ele é da região metropolitana de Curitiba, veio transferido para a Semi e trouxe bastante problema para a instituição:  desrespeito aos funcionários, incitamento violência e desordem com relação às regras básicas do funcionamento da casa, além de fugas repentinas e outros envolvimentos ilícitos. Carlos parecia liderar as ações dos outros 3 assaltantes e como conhecia a Semi lembrou-se do microondas que fica na cozinha dos educadores. Então quis a chave, porém ela não estava em nenhum lugar, até que um assaltante chegou para mim perguntando qual das chaves que ele carregava era a da cozinha. Não era nenhuma! Neste momento, pisou no meu rosto e me perguntou: "_ Lembra de mim?". " _Não!", eu disse.  E ainda respondeu: “_ Então, eu voltei!" Ele vivia dizendo que estava sempre em busca de coisa muito boa, e que conseguiria, custasse o que custasse. Afirmava que corria atrás  de seus objetivos e por isso não se rebaixaria por ninguém e nem ao menos se contentaria com pouco! Uma vez o ouvi confessar para outro detento que sua mãe, apesar de ausente, um dia, havia o abraçado, falando que o amava e que ele merecia o que há de melhor nessa vida.
Eu não pude visualizar  os rostos, pois, umas das ordens mais repetidas era: “_ Olha para baixo, filho da puta!”. E realmente não reconheci o adolescente na hora. É  possível que dois dos quatro assaltantes já haviam, passado pela Semi. Mesmo sem ver as faces, prestei atenção nas roupas que usavam; mantinha meu celular no bolso e as mãos meio soltas dentro do nó de fio de luz número 10. A chave apareceu enquanto esse assaltante me perguntava se eu o conhecia, ela caiu do sofá na hora em que ele me cobriu novamente. Assim, abriram a cozinha e pegaram o eletrodoméstico.
Depois de revirarem tudo, mandaram a gente levantar e ir pulando, amarrados e com as cabeças cobertas, até nossos carros. Cada um foi trancado no  seu próprio porta-malas, o que eu acredito ter sido uma coincidência.
Naquele instante, comprimido na escuridão, nenhum pensamento me vinha à mente, apenas vivia o momento, escutava tudo o que me cercava e mais nada.  Eles verificaram rapidamente a rua; não havia movimento e saíram. Carlos dirigia o meu carro, acompanhado de outro assaltantes; os demais estavam no outro veículo que era  conduzido  de forma desastrosa e isso causou um rápida discussão entre os condutores. Farol desligado, fritação de embreagem foram erros recorrentes e consecutivos. Pegamos a rua Carlos Cavalcanti e por ela fomos seguindo. Consegui libertar minhas mãos e tirar o cobertor amarrado da minha cabeça. Então, às 20:06, mandei a primeira mensagem para o coordenador da Semi avisando o que tinha acabado de acontecer e pedindo para acionar a polícia com urgência. Enquanto isso, os carros seguíamos em velocidade alta. Do local onde estava, pude ouvir que o outro veículo bateu e parou por ali. Seguimos pela mesma rua mais rápido ainda, e eu continuei mandando mensagem informando o que acontecia.  De repente, percorríamos ruas de terra e toda curva era brusca. Percebi que estávamos bastante afastados. Informava tudo o que ocorria via mensagens. Foi quando pararam o carro numa subida, abriram o porta-malas (meu celular estava escondido na minha virilha nessa hora,  e eu havia me amarrado precariamente, mas, tal qual haviam me deixado). Mandaram-me descer e me perguntaram se eu sabia onde estava, olhei e não reconheci o lugar, pois, numa estivera ali.


III
           Disseram que o outro carro havia batido e por essa razão me manteriam no porta-malas, amarraram-me e novamente me jogaram no lá dentro. Antes de sair, disseram que voltariam para me trazer comida e água.Carlos segurava a minha mochila com propriedade. Em seguida, fecharam a porta. Imaginei  que estavam por perto. Continuei me comunicando por mensagem, tentava me informar onde poderia estar, mas com cuidado  para não me mexer muito.

 Até que ouvi um barulho de trem se aproximando, prontamente comuniquei. O barulho foi aumentando e senti que uma luz forte se aproximava. Pensei estar com o carro sob os trilhos e rapidamente estourei a tampa do bagageiro, levantei minha cabeça e vi que o trem estava muito perto do carro. Olhei para os lados e não vi ninguém, aproveitei o barulho e o tremor, pulei pela janela do carro que estava aberta. Desci a ladeira correndo sem olhar para trás até encontrar uma mercearia aberta. Perguntei qual era o bairro e o proprietário me disse desconfiadao: “__ Aqui é ponto final do Lagoa Dourada 2. Realmente, nunca estivera ali antes, liguei para o coordenador que passou para o policial que responsável por minha busca. Disse  a ele que eu estava em frente de um lugar chamado “Comunidade Terapêutica”. Em menos de 5 minutos, chegaram o coordenador ealgumas viaturas. Em uma delas vi o outro educador. Ele havia saído do carro antes mesmo da colisão, pois, conseguiu abrir o bagageiro por dentro, pulou com o  veículo em movimento, 100 metros antes desse se chocar com um muro.
           Olhei para seu rosto e entendi sem palavras tudo o que estava sentindo. Voltamos para a Semiliberdade e 6 dos 8 detentos haviam retornado. Trouxeram-me para casa a fim de escanear e xerocar várias cópias de uma foto 3x4 do Carlos Machado, que  havia na Semi. Enquanto fazíamos isso, a polícia me ligou para reconhecer um suspeito que pego correndo na rua com  o documento do meu carro. Ele, de fato, era o responsável por bater e destruir a frente do corsa. Depois disso, fui até meu carro com a chave reserva que estava guardada em casa e pude resgatá-lo. Assim, fomos para a delegacia onde permanecemos entre depoimentos, chás de cadeira e vistorias dos veículos até às 4 da manhã do dia 13 de abril. Passei na Semi e deixei o microondas que ficara em meu veículo. Fui autorizado pelo coordenador, e voltei para casa. Obviamente não consegui dormir, pois  uma explosão de cenas vieram à minha mente e eu tive que dialogar com todas elas. Pela manhã fui ao dentista e constatei que meu dente havia mesmo sido quebrado.Sem nada dizer, resolvi descansar.

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